The Project Gutenberg EBook of Leituras Populares, by Antero de Quental This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.net Title: Leituras Populares Author: Antero de Quental Release Date: June 18, 2010 [EBook #32871] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK LEITURAS POPULARES *** Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search)
ANTHERO DE QUENTAL
ANTHERO DE QUENTAL
LEITURAS POPULARES
BARCELLOS
Typographia da Aurora do Cavado
Editor—R. V.
1896
Tiragem apenas de 100 exemplares:
20 em papel de linho.
80 em papel d'algodão.
N.º___
Um dos periodicos academicos em que Anthero de Quental mais collaborou durante o seu curso universitario foi o quinzenario Preludios Litterarios, publicado em Coimbra desde dezembro de 1858 a janeiro de 1861, tendo por fundador, director e redactor principal Vicente da Silveira. Para elles escreveram os mais talentosos d'entre os academicos d'então, contando-se{6} n'este numero Augusto Filippe Simões, Adolpho Ferreira Loureiro, Antonio da Silva Gayo, Eduardo José Coelho, Antonio Lopes dos Santos Valente, Augusto Luciano Simões de Carvalho, Bernardino Pinheiro, Francisco Beirão, Guimarães Fonseca, Joaquim Simões Ferreira, o divino João de Deus, e ainda outros.
De Anthero de Quental, entre outros trabalhos que n'elles inseriu, conta-se a serie de artigos que epigraphou Leituras Populares e que sahiu em seu volume II e n.os 2, pag. 9 e 10: n.º 3, pag. 17 a 19; n.º 4, pag. 25 e 26; n.º 6, pag. 41 e 42; n.º 8, pag. 57 e 58; n.º 15, pag. 116; e n.º 20, pag. 153.
Comprehendem-se n'esta serie a apreciação das Bibliothecas Ruraes, por Cormenin, o eminente publicista francez, que tanto illustrou seu nome como ainda o pseudonimo de Timon, com que firmou alguns de seus trabalhos; a exposição e apreciação dos Estudos sobre a reforma em Portugal de J. F. Henriques Nogueira, incontestavelmente o primeiro de nossos publicistas em este paiz, cujos trabalhos estão reclamando instantemente uma edição completa e popular, que os torne conhecidos de todos e evangelho da democracia, que bem o merecem elles pela elevação e amplidão admiraveis de suas vistas e alcance; e a exposição e apreciação da Felicidade pela agricultura, a obra peregrina{7} de Antonio Feliciano de Castilho, em que tudo é ouro de lei, desde sua linguagem, a mais portugueza e formosa, até seus ensinamentos os mais santos e justos e proveitosos.
Coube agora a vez de virem esses inestimaveis estudos de Anthero á nossa modesta collecção de seus trabalhos dispersos, e não ficarão elles sendo uma das menos brilhantes paginas d'ella.
Rodrigo Velloso
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Derramai a instrucção sobre a cabeça do povo, que bem lhe deveis esse baptismo.
Alm. de França
Um dos grandes symptomas de regeneração e progresso moral do seculo, em que vivemos, é, sem duvida, o desvelado carinho com que, quasi por toda a parte, cuidam grandes e pequenos, com{10} interesse ou desinteresseiramente no melhoramento e instrucção do povo—esse grande, inculto, e interessante engeitado—como d'elle diz um grande poeta. É que a grande voz da democracia quando fala, inspirada pela boca dos Kossuths e dos Mazzinis, falas de amor e de esperança, não sei de coração generoso aonde não tope um echo.
Bem que a Europa jazia manietada mais ou menos pelos grilhões da tyrannia, comtudo não se mostram os governos descuidosos em promover a illustração pelo meio das massas: por toda a parte, nomeadamente na França, na Italia, na Allemanha e até na inculta Russia, se veem a cada passo escholas para o pobre, e não é raro topar o trabalhador, pela hora da sésta, entretendo-se a{11} folhear, lêr e entender livrinhos, que, apesar de mui comesinhos e de popular expressão, nem por isso deixam de o iniciar no saber.
É certo que os verdadeiros promotores d'este progresso intellectual não são os oppressores, que mal têm elles tempo de se rodearem de lanças e bayonetas: são os democratas, os verdadeiros amigos do povo, que por elle velam, e cuja voz, que é a voz da verdade e da justiça, apezar de proscripta e desterrada, brada tão alto, que a propria tyrannia, em que lhe pese, se vê forçada a se sujeitar mais ou menos aos mandatos d'esses representantes da opinião: parece que a providencia capricha em haver os tyrannos por instrumento da propria ruina; pois só a illustração, que dá ao homem a consciencia de seus direitos, póde derribar ruins governos e oppressores. Assim a instrucção progride e gradualmente{12} estende a sua rede, anhelando abraçar todas as camadas da sociedade, ministrando á terra virgem, mas productivel semente de muita ideia, que se há de resolver em ainda muito mais obras de bem e só para o bem.
Remissa e vagarosa, porém, vae a instrucção por esta boa terra de Portugal; e ai de nós se não se attende a este grave mal com promptos remedios, ai de nós, por que um povo que possue a liberdade sem instrucção, que só o póde n'ella iniciar e nos sagrados direitos em que se resolve, a custo poderá conserval-a, e o que é mais, conserval-a sem abusar.
Saidos apenas d'um baptismo de sangue, em que nos foi mister mergulhar para grangear uma alma nova,{13} para reconquistar a austera mãe dos povos, a liberdade, conservamos ainda vestigios cruentos, reminiscencias odiosas d'essa lucta fratricida, bem que em prol da patria; e é só a instrução que nos póde lavar da fronte as manchas do sangue de nossos irmãos, e conduzir-nos a bom fim.
Qual é pois a causa da ignorancia—indigna do seculo—em que vegeta todo o nosso povo e grande parte da burguezia? Porque não é só o proletario, é tambem a classe media em grande escala, que não cura de seus direitos e liberdades, considerando-os, indifferente, como uma invenção do seculo, e desconhecendo que só elles são as garantias unicas e segurissimas da sua individualidade e progresso.
A causa não está na escassez de livros populares, que alguns temos nós e de elevado merito; nem mesmo na indifferença{14} do povo portuguez, que sabido tem elle mostrar o como zela seus direitos, uma vez compenetrado por elles. A resposta já de ha muito a deu um grande homem e um grande Portuguez, quando se lastimava de que possuindo nós ainda todos os elementos d'uma grande ventura, só nos faltasse um a vontade dos que podem.
A carencia d'uma boa organisação de escholas, d'um bom regulamento litterario, e um ministerio—proprio de instrucção—o campo que se acanha a quem sabe, e só se alarga a quem tem e póde; eis as causas do menospreso e quasi aversão, que entre nós soffrem lettras e sciencias. Esta é a causa, e só causa de tantos males.
Sei que é dura e fere o ouvido, e{15} mais ainda o coração, esta verdade, comtudo é uma e tão amarga, que custa a confessar, parecendo melhor desculpa, a mingoa de livros bons e baratos.
É fado que entre todos os povos cultos, sendo que as nossas bibliothecas gemem debaixo do peso de boas obras nacionaes, somos porém um dos que menos livros possuimos maneiros e de facil comprehensão. Abundam as nossas livrarias em pesados volumes, de ainda mais pesada erudição e elevado estylo: mas ao alcance do obreiro, do agricultor, do proprio camponez, volumes, que por seu tamanho, preço e clareza a elles se amoldem, que lhes mitiguem, por sua amenidade e instrucção, o rustico e affanoso lidar, a custo se depara com um ou outro.
N'isso differimos da França, da Italia, da Allemanha, que os tem aos cardumes, emquanto que os nossos escriptores{16} parece falarem-se mais entre si do que com o povo.
Com tudo, para quem tiver sêde de instrucção, para quem bem os procurar, ainda ha que se achem e que sirvam.
As grandes, ideias, se vieram encontrar Portugal adormecido nos braços da ignorancia, ainda houveram almas nobres e intelligencias elevadas aonde fisessem echo; e a geração nova tem continuado, de testemunhar á Europa, que os elevados pensamentos da fraternidade não deram com corações esquivos em peitos portuguezes. Ainda ha quem trate com afan do que convem ao seu paiz e quem se não peje de dar testemunho,{17} com palavras ou com escriptos, do seu pensar, crêr ou esperar.
Nem temor deve haver de que esta, que em tão boa senda; porque a era é nova e a ideia virgem e longe o dia vem, em que tem de ceder o passo a outra maior e mais elevada.
O dever de todos, quantos sômos, que pugnamos pelas liberdades e bem do povo, é seguir sempre a grande ideia, atravez de todos estorvos e revezes, com o peito ao vento, o rosto alto, os olhos só fitos no futuro. Abrir bem o coração a voz que vem de cima, e cerral-o á das paixões da terra.
Dissera eu não serem elementos{18} de felicidade que nos faltavam; mas só o querer dos que podem tirar d'elles materia de muito bem. Temos a ideia e temos os meios; tenhamos tambem a vontade, e para todo o mal se deparará remedio.
Um pequeno alvitre quero eu lembrar que, com ser pequeno e de pouco custo, talvez não deixe de gerar bom fructo.
Ideia d'um grande francez e grande amigo do povo, Mr. Cormenin, soube ella insinuar-se em o animo d'um governo illustrado, que a soube aproveitar, e d'ella já hoje em França vão brotando fructos de muito bem.
Se o exemplo d'um povo tem algum peso no obrar dos outros, por que não applicaremos e experimentaremos entre nós a ideia do{19} grande homem sendo que ella produz, como tem produzido, resultados tão elevadamente civilisadores?
Tal experiencia quizera eu se realisasse em nossa terra, que certo estou de nos não deixar illudidos.
A ideia refere-se maximamente aos habitadores dos campos, esses, mais que todos, engeitados da civilisação moderna.
E comtudo é á sua illustração que de mais vontade nos deveremos applicar. A agricultura é a melhor e mais verdadeira mãe dos povos, e, como diz Castilho,—só um povo que lhe quer, e a quer, e a serve com desenganada preferencia, só esse é rico, rico sem fausto,{20} mas sem receio de empobrecer—o trabalho da terra é a fonte de todos os outros trabalhos, e assim, não é justo que nós, que em ocio desfructamos o trabalho do camponez, lh'o suavisemos em troca—com algumas gottas do balsamo da instrucção?
Além d'isso, se trabalhamos em proveito da sua illustração, é em proveito nosso que trabalhamos.
O cultivador, que ler, conhecerá melhor o tempo, as estações, a qualidade do torrão, da semente, o que mais convém a este ou est'outro terreno, e que especie de grão deve lançar á terra. Com este progresso na agricultura o lavrador produzirá melhor, mais, e mais barato.
Não será, pois, tambem em o nosso proveito?{21}
Ainda que não fossem elles homens, e, como taes, com igual direito a se illustrarem, bastaria a perspectiva do proprio lucro para nos fazer cuidar d'elles com affinco, pois que, curando d'elles, de nós curamos em realidade.
Entendera Cormenin que o rustico, por ser rustico, nem por isso devia ficar privado d'esse pão do espirito, que é a leitura.
Partindo d'esta verdade, imaginou elle uma bibliotheca de 200 ou 300 volumes de materia comezinha e de facil digestão para o povo: cada concelho possue uma d'estas bibliothecas dividida em tantas menores, quantas as aldeias e logares que em si conta, e em relação a ellas numeradas. Cada uma d'estas{22} livrariasinhas é enviada pelo administrador do concelho ao parocho de cada aldeia, a fim d'elle distribuir gratuitamente os volumes a quem d'elles precisar e os pedir, assentando o nome de cada leitor n'um rol, e riscando-o á maneira, que se vier fazendo entrega dos volumes.
Depois de seis mezes passados, todas as obras que compõem a livrariasinha se devem achar em casa do parocho, que a remette á aldeia que tem a Bibliotheca de numero immediato, recebendo em troca a que lá estava para o mesmo fim.
Passado tempo, quando cada aldeia tenha tido por espaço de seis mezes cada uma das bibliothecas parciaes, isto é, todos os livros do concelho por partes e por varias vezes, far-se-há troca da bibliotheca toda com a do concelho seguinte, continuando sempre assim com o{23} mesmo systema de leitura, de sorte que em poucos annos poucos livros terão, passando por milhares de mãos e através de milhares de intelligencias, feito o gyro do paiz, e levado a instrucção aos mais necessitados, sem que para isso se exijam grandes despezas.
A este alvitre, tão simples como economico e proficuo, chamou Cormenin.—Systema das Bibliothecas Ruraes Ambulantes.
A bondade de tal alvitre por si e claramente se deixa vêr. Realisar o desideratum da civilisação moderna—a instrucção do povo—em tão grande escala, tão bem, e por tal preço, cuido que outro algum o poderá fazer melhor.
Nos primeiros annos poucos resultados bons se tirarão, porque ainda os{24} habitadores dos nossos campos desconhecem as vantagens da leitura, mas, acostumados pelo uso, por assim dizer, aclimatados com o systema, e maximamente, vendo os fructos que hão-de colher os que leram, dentro em breve toda a população dos campos correrá em busca de livros e será com injustiça, que o soberbo habitante da cidade lhes poderá chamar—boçaes.
Na escolha dos livros é que se deve requerer toda a cautella, para que a instrucção não degenere em leituras prejudiciaes ou sem proveito.
Deverá constar cada bibliothecasinha de pequenos volumes sobre sciencias naturaes, medecina domestica, livros de religião, de agricultura, de politica geral, de administração, historia, geographia{25} e viagens; tudo isto escolhido por pessoa versada e idonea.
Na nossa terra, nomeadamente, deve-se curar principalmente de os procurar ou traduzir em chã linguagem das estrangeiras, escolhendo entre todos os melhores e os mais uteis.
Comtudo é não acobardar, que ainda se adiam livros bons e uteis, e os que não houverem podem bem supprir-se com versões dos melhores dos outros paizes mais adiantados que nós, n'este genero de litteratura popular.
Alguns livros ha, assentei eu, que estão no caso de percorrerem a estrada de tal missão: originaes portuguezes uns; outros vertidos na nossa lingua das estrangeiras. E que muito importa essa differença? já disse alguem que o genio{26} não tinha patria: um bom livro, que appareça hoje, já amanhã falará todas as linguas, e será lido com ardor por todos, quantos elles são, os povos cultos do globo.
D'alguns livros sei eu, que satisfazem as exigencias: poucos em verdade são elles, mas bons, mas bonissimos: quasi todos conhecidos e animados do publico; alguns não tanto; a todos o nome do auctor lhes é caução. Folgo de ter falado n'elles um pouco de longo, porque tão bons são, que lhes desejára ainda mais carinhos, mais diffusão por entre o povo. Com elles quizera eu se começasse a obra civilisadora das—Bibliothecas Ruraes.
Aquelle, que primeiro convém que o povo leia e releia, e por elle seja mui{27} manuseado, mui meditado, tem em si a propria recommendação: vem assignado por nome portuguez e dos maiores. D'elle disse Castilho—aquelle que em alguns paragraphos pretender julgar uma obra tão cheia, tão variada, tão germinal toda ella, como é este livro, provaria, ou que não a lera, ou que não era digno de a ler. Nós a lemos, a relemos, temol-a ainda aberta, e aberta a deixaremos sobre a meza para nossas meditações.
Seu titulo é:
POR
J. F. Henriques Nogueira
Não é um livro; é uma obra.
G. Planche.
O livro cujo valor apregoamos, e ao qual outorgamos um primeiro e eminente{28} logar na nossa ora ideal—mas tão realisavel bibliothecasinha popular,—é digno de tal occupar, sendo que entre todos é elle o mais util e accommodado á intelligencia do nosso povo—ainda mal—tão inculto, tão por mondar de cardos e ruins ervas, e, o que peor é, com tão pouca esperança de proximo e util cultivo.
O auctor do livro, como bom philosopho, cura menos do que é, ou póde ser, do que indaga o que em sã razão devera existir: e ao tempo que, em succinto mas substancial quadro, alevanta o rude trabalhador ao nivel de seus direitos, não se mostra remisso no estudo dos deveres que se lhe oppõem; accrescendo ainda um catechismo acabado dos meios de realisação d'uns e de satisfação dos outros. Ajuntai ainda uma expressão clara, por correcta; uma viveza toda meridional de imagens; um finissimo tacto ou, por assim dizer, um como faro{29} mui mimoso no descobrimento dos males sob que geme a sociedade, e a mão segura em alvitrar meios de prompto remedio; e em limitadas phrases havereis o livro.
Diz modestissimamente o auctor, que o livro não é mais do que a selecção de pequeninos estudos ácerca d'esta ou d'est'outra reforma. Sobremodo maior é o seu merecimento, e em conta de maior obra o tenho eu. É um systema de organisação social completo e cheio; resumo, conciso sim, mas germinal das reformas, que ha mister um povo e uma sociedade já gastos. Dai-me população e territorio, que meios de organisar um governo no livro os acho eu todos; mas governo racional, philosophico sem que seja irreligioso (e é este o dizer verdadeiro{30} da palavra); governo, finalmente como o deve ser um no seculo dezenove.
Se desejaes um testemunho do seu bem querer, lêde com que tocante singeleza resume elle, em poucas palavras, o seu credo politico e social, onde, a par do grande reformador, deparareis com o poeta e com o cidadão honesto, e amante da sua patria.
Eis os termos em que se expressa:
—Quizera que, n'um paiz como o nosso emancipado por cruentos esforços da tutela humiliante, egoista e sanguinaria da monarchia absoluta, cansado do regimen espoliador, traiçoeiro e faccioso da monarchia constitucional, necessitado de restaurar as forças perdidas em luctas estereis e de cicatrizar feridas, que ainda gotejam, ávido, emfim, de gozar as{31} doçuras da liberdade, por que tanto ha soffrido; quizera que o governo do estado fosse feito pelo povo e para o povo, sob a forma nobre, philosophica e prestigiosa de—Republica.
—Quizera que o poder supremo, emanado do voto universal, residisse na assembleia dos representantes do povo e que o poder executivo fosse confiado a um ministerio de tres membros, nomeados pela assembleia.
—Quizera que a administração da justiça corresse imparcial, rapida e gratuita; que os serviços feitos ao paiz tivessem uma recompensa condigna; que os crimes achassem correcção em vez de vingança, e que a pena de morte, vestigio maximo da barbaridade, fosse abolida.
—Quizera que a guarda nacional, milicia gratuita, que não obriga o cidadão a abandonar as suas ocupações, constituisse{32} o grosso da força armada; e que o exercito subsidiario se reduzisse unicamente aos corpos scientificos.
—Quizera que a despeza publica fosse inferior á receita; que se proscrevesse o ruinoso systema das dividas; e que a applicação dos rendimentos do Estado fosse inteiramente productiva, illustrada e philantropica.
—Quizera que a rede tributaria, que ameaça de estancar o paiz, ficasse reduzida a um só imposto progressivo sobre a renda, cobrado sem despeza e realisado sem agio.
—Quizera que os capitaes, pela barateza do juro, auxiliassem a producção, em logar de absorverem a maior e melhor parte de seus lucros.
—Quizera que o direito á subsistencia pelo trabalho tivesse nas officinas, colonias e obras publicas, uma util garantia; que o trabalho das mulheres{33} ganhasse uma area mais vasta, e que fosse melhor retribuido.
—Quizera que a Agricultura, a Industria fabril e o Commercio recebessem do estado uma desvelada protecção, como fontes principaes da riqueza.
—Quizera que as estradas, os canaes, as barras, e em geral, todos os meios de viação merecessem a preferencia no extenso capitulo das nossas necessidades.
—Quizera que a communicação do pensamento não achasse obstaculos; e que o correio fosse inteiramente gratuito, tanto para as cartas como para os escriptos periodicos.
—Quizera que os orphãos, os doentes e os invalidos, que dependem da caridade publica, encontrassem nas casas de mesericordia lenitivo para os seus males; e que se franqueassem a todos os operarios as instituições economicas e preventivas da miseria.{34}
—Quizera que os cuidados exercidos sobre a saude publica conseguissem minorar e extinguir, se tanto fosse possivel, as causas de infecção, que vão minando gradualmente a robustez das gerações.
—Quizera que o derramamento da instrucção chegasse ás ultimas camadas sociaes; que a imprensa publica se tornasse um instrumento de progresso; e que o estado protegesse o talento abandonado, que a falta de cultura não deixa medrar.
—Quizera que a religião de nossos paes não servisse de escudo a interesses egoistas e mundanos, mas que acompanhasse o progresso da humanidade; que os bispos fossem, como n'outros tempos, eleitos pelo povo; e que os parochos se elevassem á altura de mestres e de moralisadores.
—Quizera que os interesses da localidade{35} fossem attendidos primeiro do que tudo; que o territorio se dividisse para todos os effeitos em grandes e bem regidos municipios; e que as aldeias tivessem os melhoramentos indispensaveis ao bem commum dos moradores.
—Quizera que a associação, origem de maravilhas, se estendesse a todas as classes da sociedade e principalmente áquellas que vivem do seu salario.
—Quizera que a familia, instituição primitiva e santa, não apresentasse o quadro odioso dos direitos de primogenitura, que dão a uns filhos a regalia de senhores, em quanto conservam outros na humiliação de servos.
—Quizera que a propriedade, direito natural e civilisador, se estendesse ao maior numero de individuos; e que para completar a liberdade da terra se permitisse a remissão de todos os encargos que a oneram.{36}
—Quizera, por ultimo, que Portugal, como povo pequeno e opprimido, mas conscio e zeloso da sua dignidade, procurasse na—Federação—com os outros povos peninsulares a força, a importancia, e a verdadeira independencia que lhe faltam na sua tão escarnecida nacionalidade...
Não há querer mais nobre, aspirações mais santas; a par do grande philosopho, haverá ahi quem desconheça o poeta e o humanitario?
Economista profundo, é um poeta e pensador; o illustre democrata, á maneira que nos apresenta uma das suas muitas, mas bonissimas reformas, não póde, precipitando o tempo pela imaginação, deixar de nos entoar um de{37} seus hymnos tão enthusiastas, tão intimamente consoladores de esperança no futuro para o pobre, o desvalido proletario.
A inspiração é tanta, a crença é tão forte, a fé é tão viva, que bastas vezes o tomarieis por um d'esses prophetas que nos pinta a antiguidade, a anathematisar os maus, de sobre esboroadas minas, a aviventar no coração dos bons a emmurchecida esperança em melhores tempos e mais christãos.
Ao ver tantas promessas de ventura, muitos, de incredulos, se negarão a dar-lhes fé; muitos lhe chamarão sonhos febris d'um sentido scismar de poeta; mas nenhum se atreverá a apodal-os de veneno ou de maldade. Muitos dirão com o poeta:
Vãos desejos, talvez: mas bons de certo.{38}
Mas nenhum terá força de lhes lançar o anathema terrivel, com que, verdade é, o seculo sóe pagar as ideias boas e nobres.
Quiçá cedo é, para diffundir a vontade de reformas: seja; que o não é: quem acampa nos arraiaes longinquos e desertos do futuro, e o aguarda sereno e firme na sua fé, tem uma nobre missão:—a de abrir e esclarecer, sentinella do porvir, a estrada da nova era; que outros, vagarosos, de prudentes, só mais tarde pisarão.
Não é tarde; que o mundo foge no infinito do espaço e caminha direito ás regiões encobertas do futuro; e, quando o seculo aperta o passo, não ha face de verdadeiro democrata, que deva pejar-se de o acompanhar n'este caminhar providencial.
Se é sonho, a sonhar por sonhar mais val, como diz Pelletan, o sonho{39} que diz a tudo quanto soffre cá na terra:
—Levanta-te, e espera! do que o que lhe repete:—Soffre, que para o teu mal não ha salvação nem lenitivo!
POR
Antonio Feliciano de Castillo
Da terra saímos; á terra volvemos:
A terra nos veste, nos traz, nos mantem.
Quem mais do que a terra merece os extremos,
Que obtem dos bons filhos a próvida mãe?A. F. de Castilho
Eis agora aqui um livro, que, em meio da geral fermentação de tumultuosas paixões e ambições immoderadas que agitam as nossas modernas sociedades;{40} em meio d'este lamentavel estado de geral descontentamento e desgosto de que todos mais ou menos somos victimas; quando, segundo judiciosamente observa Aimé Martin, o artista descrê da arte, o padre de Deus, o mancebo do futuro, e até a mulher do amor, e nem um só tem o menor vislumbre de esperança na felicidade com que ainda póde topar no estado que lhe deparou a providencia; eis agora—digo eu—um livro que, em meio de tudo isto, nos promette essa almejada felicidade, que nos aponta o como a poderemos alcançar, que o prova—e o que mais é—não fala em referencia aos grandes, aos poderosos, aos que por si tem todos os dons da fortuna, mas ao pobre, ao desvalido, ao que chora e soffre em meio das trevas da ignorancia, da miseria, quasi, direi, da servidão.
É mister ser-se um grande poeta—poeta{41} de muito crêr e muito esperar,—para poder lançar um olhar seguro por sobre todas essas populações miseraveis dos nossos campos—orphãs da moderna civilisação—palpar-lhes todas as feridas, ouvir-lhes todos os queixumes, conhecer todo o fundo de seus males, e vir depois ainda crente, mais crente talvez do que nunca, entoar um hymno de esperança e felicidade para esses que por cruel ironia só lhes respondem com lagrimas e gemidos.
É que o poeta recebeu de Deus o condão mago de ler na noite de arredado futuro; de vêr luz e muita luz aonde outros só vêem trevas; flores de amor e de vida, aonde para muitos só brotam os goivos do sepulchro.
Esse lê bem, que assim lê em lettras{42} de ouro paginas de esperança e felicidade no grande livro dos destinos da humanidade.
Crê e espera—mas não lhe vem só do coração—de seu condão de poeta—essa crença e essa esperança.—Estudou, pensou, viu muito pelos olhos de sua intelligencia, e n'este estudo firmou elle em grande parte essa crença, que lhe dá a força de prometter ainda felicidade e muita felicidade para os campos, para os habitadores dos campos e para todos por via d'elles.
«Aconselhar a agricultura ao povo, diz o auctor, é aconselhar-lhe a propria felicidade».
Veremos se o alvitre é tão bom como se apregoa, se não cegou o poeta a propria inspiração.{43}
Retemperados pelas aguas lustraes d'um novo Jordão, por esse baptismo de fogo e sangue, pelo qual á Providencia aprouve fazer-nos passar, como iniciação nos umbraes do templo da liberdade, que a custo iamos conquistando, de tal arte nos cegou a novidade da conquista, tão afanosos nos mostramos no empenho de a bem guardar, que de todo nos esquecemos de que não é ella o fim unico (como se já suppoz) dos humanos destinos, mas antes um como meio de alcançarmos outros progressos; um primeiro passo, d'entre os muitos que ainda temos a dar: uma mera iniciação para aquelles que assentam o seu campo nos ainda mui desertos arraiaes do futuro.
Argos vigilantes, perdemo-nos enlevados na contemplação do thesouro, que assim nos traz presa a vista e a alma,{44} sem nos lembrarmos, que em volta a esse pomo d'ouro, que com tanto amor guardamos, outras e muito formosissimas flores se definham e morrem, sem que produzam fructo, á mingua talvez d'uma gotta d'agua, com que—a haver boa vontade—se lhes poderia dar vida ás raizes sequiosas.
A agricultura, com ser a mais esperançosa para bom fructo, de todas essas flôres, que vão murchando no pó ao minguar-lhes o alimento, é por ventura de todas ellas a que mais soffre, e a quem mais se recusa esse alento e essa protecção, de que por tantos titulos nos é credora.
Mal de nós, que já nos ficam bem atraz esses tempos em que os grandes homens da maior nação se não envergonhavam{45} de serem encontrados, em meio do rude trabalho das lides agricolas, por um povo inteiro, que tambem se não pejava de os ali vir procurar, para os exaltar aos mais altos cargos da republica; e em que esses heroes, lavradores, depondo a toga da dictadura, depois da patria salva, se sentiam orgulhosos e felizes em voltarem cobertos de louros para o trabalho de seus campos, que em meio haviam deixado!
Já vão longe esses tempos; e todavia a terra, a «Alma mater» dos antigos não cessa de nos abrir o seu seio carinhoso, de nos chamar, de nos sorrir, de nos convidar com todos os seus perfumes, com todas as suas verduras, com todos os seus matizes de mil flores.
Mãe extremosa não conhece filhos ingratos e inconstantes; a todos gerou e a todos há de involver. Se chora, encobre-nos os prantos; e, em dias de tribulação,{46} lá a temos sempre, que nos estende os braços com affecto indizivel, que nos consola, nos acaricia e nos melhora, até que por fim, orgulhosos da propria grandeza, renegamos a mãe que nos deu o ser, e nos afastamos d'ella, com desprezo, como se não fosse a ella e só a ella, que toda essa grandeza se deve attribuir!...
Com effeito, só por ignorancia ou por desmedido ou mal fundado orgulho, se póde conceber tal desprezo e tal ingratidão.
A arte de domar a terra, para d'ella extrairmos aquillo de que mais carecemos na vida, não pode de certo ser apodada de rude, nem menos de desprezivel.
Tão velha como o homem, como as{47} suas primeiras necessidades, é-lhe a sua antiguidade segura garantia de excellencia e de nobreza; desprezivel ninguem de boa fé lhe poderia chamar, sendo que todas as sciencias a veneram e cortejam, entre si disputando qual d'ellas lhe prestará maiores serviços.
As cidades, que assombram os campos com seus templos, columnas, praças, grandeza e luxo; os exercitos, que os assolam, impellidos pelo genio destruidor das batalhas; essas cidades ambulantes, que levam d'um mundo ao outro os productos de todos os climas: todas essas maravilhas de grandeza e intelligencia humana, tudo isto saiu dos campos, tudo isto por lá se creou; tudo isto ha de muitas veses, nas longas horas de atribulação e de angustia, lembrar-se com saudade da humilde mas pacifica choça, d'onde primeiro desabrochara á luz do sol; tudo isto ha de deixar{48} de existir, de mover-se, de tumultuar, ha de esquecer por fim, que elles hão de continuar ainda, por muito tempo, depois do homem talvez, a vecejar, a florir, a fructificar, sempre bellos e sempre risonhos, agora e depois, como no primeiro dia da creação!
A industria e o commercio, os dois mais poderosos e mais incansaveis agentes e creadores da riqueza das nações, lá tem nos campos alicerce, lá foram buscar á agricultura todas as forças com que operam, todas as galas de que se revestem.
O ferro, com que o homem fabricou novos orgãos, para ajudar os que a natureza lhe déra; o carvão, com o auxilio do qual centuplica as suas forças; lá lh'os tinha a terra guardados no seu{49} seio, como mãe carinhosa: o linho, de que fabrica os vestidos que o revestem, tambem já lourejou pela encosta de suas collinas: o madeiro, que recurvado sulca as ondas em busca de novos mundos, tambem orgulhoso e gigante se ergueu outr'ora no meio de suas florestas: o grão, que o nutre; o fructo, que o delicia; o vinho, que lhe dá mais vida e alegria; tudo isto tambem por lá cresceu e medrou, tudo isto de lá saiu.
A sciencia, a mais nobre de todas as sciencias de Deus, porque é a sciencia do infinito—a astronomia—tambem lá vae nos campos buscar a sua origem: lá nasceu entre humildes pastores, lá se desenvolveu, até que o homem das cidades, orgulhoso já de sua grandeza, a veio usurpar aos que primeiro a descobriram, para, no remanso do gabinete, ou no terraço do observatorio lhe dar ainda maior desenvolvimento.{50}
A geometria—por ventura mãe da astronomia, tambem nos campos tem seu berço.
Todas as artes lá vão buscar as materias com que operam, muitas tambem as suas melhores inspirações.
Como essas cidras maravilhosas da fabula, que, rudes na fórma e ingratas ao paladar, em si continham porém tanta formusura, tanta materia de bem para o mortal feliz a quem dado fosse o abril-as, como ellas é tambem rude e aspera a agricultura na fórma e pouco promettedora de prodigios.
Mas para quem bem a essencia lhe fôr especular, para quem, com entranhavel amor, a cultivar, para quem, com mãos prodigas, lhe souber dar afagos e carinhos, para esse, similhante á cidra{51} fabulosa, tem ella um seio rico de muito affecto, de muita materia de felicidade e belleza, para esse, será ella sempre a amante extremosa, a mãe procreadora de prodigios sem conta.
Qual há, porem, vara magica de fada, que—trocando-a—a chame á vida, a faça abrir ao sorriso e ao amor, lhe dê que do seio amigo brotem todas essas flôres de ventura, que lhe sabemos e ella nos promette, mas que sem estranho auxilio não podem desabrochar nem medrar?
Eis ahi o problema: mas eis tambem no livro a resolução, a vara de mago condão, a panacêa universal para os males, sob que geme esta boa terra de Portugal.
É a associação mãe de taes prodigios,{52} de tantos beneficios, fonte perenne e inesgotavel, que apregoar-lhe valor e necessidade, além de desnecessario, fôra loucura quasi rematada.
Com effeito, hoje, á luz do seculo XIX, quando é orgulho e timbre de toda a sciencia o prescrutar bem fundo a alma, a intelligencia e o corpo humano, procurando ahi todas as leis da sua natureza, para n'ellas—e só n'ellas—se estribarem theorias e instituições, hoje desatino seria buscar ainda provas para aquillo, que d'ellas menos carece, sendo que a sociabilidade é, de todas as leis naturaes, aquella que mais exuberantemente demonstram as theorias da sciencia, e a mais que todas inexoravel e severa logica dos factos.
A muitas d'estas leis póde desobedecer o homem, contra outras se póde totalmente revoltar, mas contra esta, por sem duvida o tenho, seria tal attentado,{53} que assento jámais poderá realisar-se.
Subtrahi os homens—um só momento que seja—ao seu influxo benefico, e para logo os vereis amesquinhar-se, quando não desapparecer da face da terra.
Condição primaria de sua existencia e progresso, ha de com elle mais e mais desenvolver-se, que não há ahi decreto de rei da terra—fôra elle Cesar ou Napoleão—que ouse derogar o decreto do Eterno!...
É pois a associação o cumprimento d'uma lei natural.
Na progressiva evolução d'essa lei e a par d'ella, vejo eu caminhar a humanidade; desinvolver-se, se se ella cumpre; estacar, se pára; definhar, se{54} esmorece; seguindo-a sempre e resentindo-se de suas menores alterações.
E é de razão, porque, a ser o fim do homem na terra o desenvolvimento de suas faculdades, que outra há mais nobre e importante; que mais influa nos seus destinos que esta lei da sociabilidade?
Por ella se póde aferir o grau de civilisação d'este ou d'est'outro povo porque ahi onde mais o homem se estreitar com o homem, aonde mais de um irmão ajudar o outro irmão, ahi tambem mais o espirito tenderá a elevar-se—e de feito se há-de elevar—elevação que toda se desata em muita sciencia, muito bem e muita ventura.
Reconhecidos estes principios, reconhecidos—quasi direi—demasiadamente, houve quem d'elles se possuisse a ponto de n'elles querer buscar todo um systema de organisacão social.{55}
Desvairou-os o amor d'um principio, o conhecimento d'uma lei natural, por ventura a ignorancia de muitas outras; e, encarando o homem por lado restricto, quizeram o desenvolvimento d'uma faculdade á custa das outras todas.
Não quer isto porém a harmonia, essa outra lei de Deus, que tem de presidir—como revelando-a—a toda a creação.
É mister que a todas as faculdades seja dado um maximo desenvolvimento; mas é mister tambem que cada uma, ao alargar a sua esphera, não vá calcar outras, a quem egual direito assiste...
Por que é lei da natureza humana a liberdade, porque deve o homem responder por suas acções, não quer a boa justiça, não quer a boa rasão, que á força—que{56} não com a arma da persuação—se lhe imponha o cumprimento d'uma obrigação qualquer, fôra ella tão santa, tão prescripta por Deus, tão filha da natureza do mesmo homem como esta da sociabilidade.
Assim, é com a liberdade e só pela liberdade, que tem de effectuar-se este grande pensamento da associação, este grande abraço que obedecendo ás leis do proprio ser, tem de—no futuro—dar homens e povos, estreitando cada vez mais os laços que os unem, e centuplicando forças, sympathias e vida.
Problema longo tempo agitado, dá-lhe hoje a sciencia cabal resolução. Desde que esta, despresando theorias incertas e imaginosas, foi buscar como base de seu estudo, para ahi fazer alicerce seguro, aos principios que tinha de formular, a natureza do ser, a quem todos tinham de ser applicados; desde essa{57} occasião ganha estava a causa da liberdade.
Podem offerecer-se-lhe mil estorvos, levantar-se contra ella as maiores tormentas, que ella, atravez de tudo, lá ha-de ir sempre seguindo seu caminho, ganhando o terreno palmo a palmo sobre os seus adversarios, e libertando o homem cada vez mais do jugo da miseria, da escravidão e do embrutecimento.
Associação e Liberdade: são estas as duas ideias salvadoras—e só ellas—que, uma pela outra completando-se, podem levar a bom fim as nossas modernas sociedades.
Associação livre—eis o que em nome da sciencia podemos affoutos responder a esses nobres, mas desvairados, sonhadores{58} de utopias, que na fé de uma imaginosa organisação social, toda artificio humano, que não segundo as leis do natural organismo, e em nome das santas esperanças e fraternaes aspirações, que em abundancia lhes enchem as almas generosas, nos promettem, há meio seculo, o progresso da perfeita felicidade—porventura mais do que ao homem é dado esperar na terra.
A sciencia toma o facto, especula-lhe a essencia e natureza, observa-lhe as relações, e de tudo deduz as leis que lhe presidem. Póde desempedidamente apresental-as á luz do dia, e para o futuro concluir affoutamente do passado; póde e deve-o, que outra não é sua missão.
Mas o que muita vez o frio calculo e{59} analyse reflectida deixam por mesquinho ou vulgar, sem d'ahi tirarem materia para considerações, toma-o para si o coração sensivel do poeta; pela imaginação o nobilita e engrandece, na mente lhe fórma a robusta estatura; até que apparece em fim gigante de crescidas forças, esse que ainda há pouco, de mesquinho e pigmeu, nem sequer attrahia as vistas do investigador curioso.
É assim que a imaginação e a analyse, a sciencia e a inspiração, uma pela outra se completam, trabalhando cada qual na esphera que por natureza lhe compete, e para fim commum—a Verdade, concorrendo uma e outra na medida de suas forças e aptidões.
São (ou antes deverem ser) duas irmãs queridas e extremosas, em obra commum, empregando desvellos e cuidados; nunca, como até hoje, rivaes, que por um mesmo amor, e em nome{60} da mesma causa, se detestam e guerreiam.
É d'estes dous elementos—sciencia e inspiração—que brotam as nobres ideias e grandes verdades, que por vezes têm mudado a face de uma civilisação, quando, em vez de uma á outra se mostrarem hostis para fim commum se têm dado mãos amigas.
Nas porfiosas luctas politicas do seculo, em que—mais ou menos—todos temos sido actores ou espectadores, se encontra clara prova e exemplo manifesto da proposição que aventamos.
Por longo tempo trabalharam em bandos oppostos e á sombra de vario pendão os modernos representantes d'esses bons principios, uns e outros promettendo-nos felicidade, mas cada qual{61} em nome de mui diferente divindade; até que, passados que foram os tempos de mais escandecida lucta e acalorada discussão, a mesma força da verdade os trouxe a si; e a commum e amigavel união lhes soube chamar os animos discordes.
Ambos em parte transviados, a ambos comtudo assistiam tambem em parte principios de verdade. Inimigos, seriam sempre viajantes perdidos em densas trevas, cada vez a se affastarem mais das veredas trilhadas; reconciliados, um ao outro se guiam e ajudam, com as luzes e forças proprias, em nome d'uma longa amizade no futuro, postas em commum.
E de feito, não é hoje que, no meio d'essa pleiade illustre de generosos espiritos, que anhelando anciosos por um melhor futuro, trabalham afanosos para alivio e engrandecimento dos que choram;{62} não é hoje que entre elles se encontrarão rivalidades d'eschola, mas indignas d'homens, ao bem dos homens votados.
São hoje irmãos. Os erros de cada qual, ao despirem-se dos velhos rancores, sacrificaram-nos no altar da nova alliança; e d'entre as cinzas impuras, que o vento dispersa ao longe, sahiu—nova Phenix—a flôr immarcessivel da verdade eterna.
Associação e Liberdade dissera eu serem essas duas ideias aonde se depara mais verdade e que, ambas fundidas em factos, podem dar fructo mais sasonado e proveitoso; o leito por onde placida póde correr, demandando seu termo, a torrente—ora revolta e turbada por mil encontrados elementos que ahi{63} se revolvem e guerreiam—da vida das modernas sociedades.
E como não seria assim, se ramos frondosos de arvore, que no coração do homem tem fundas as raizes—a propria natureza, têm por fim, entrelaçando-se estreitamente e em mutuo amplexo apertando-se, ampararem-se e defenderem-se uns a outos, porque assim reciprocamente se protejam no crescer e no fructificar? Se são ara sacro-santa aonde os animos discordes em busca da verdade—mas que d'alma a buscam, tem de vir pactuar a alliança, queimando ahi, em holocausto incruento, o fel de paixões ruins e desamoraveis ¿como poderão ellas, por estranho desapego e ingratidão mentir ao que, em nome de futuro melhor, nos promettem, e a que, na fé d'esse almejado futuro prestamos crença e esperança illimitadas?
Não podem. Quanto á intelligencia e{64} coração do homem se revela uma verdade, tam rica de evidencia, tam promettedora de consolações, não póde «Aquelle» que ao espirito a revelara deixal-a sem que pela revelação dos factos receba confirmação e com ella foros de inconfutavel.
Uma ideia assim nunca mente.
Descendo das subidas regiões da abstracção ao campo mais arido e abrolhoso—mas porventura mais util, das realidades, da theoria aos factos; o livro, cujo bom espirito por todos quiseramos diffundido, como vaso de balsamo suave, que a todos vae ungindo e perfumando, apontando alvitres, que d'estes bons principios descendem testemunhando não escasso cabedal de saber,—testifica tambem aquilatado amor pela sciencia{65} e pelos homens; que em muito conta o amor e o enthusiasmo para o descobrimento da verdade.
De tantos e tão bons alvidramentos, quantos o livro encerra, um há que, como base de systema, os resume em si, d'onde todos descendem, ponto culminante, centro em volta do qual, satelites a lhe reflectirem o brilho, volteiam todos os outros, compartilhando com elle a verdade e prestimo com que é dotado.
É este o projecto das «Associações Agricolas».
Fim
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